O Brasil tem sido frequentemente visto como um pioneiro em sua luta contra o HIV/Aids. Durante a última década, no entanto, este papel de vanguarda corre o risco de se reverter à medida que a quantidade de infecções por HIV entre homens jovens triplicou. A principal razão pode ser encontrada na estrutura política conservadora, que levou a uma educação sexual insuficiente e a uma quantidade inadequada de discussão pública e aberta sobre o assunto. Em todo o mundo as minorias sexuais e de gênero estão em maior vulnerabilidade com o HIV, este também é o caso do Brasil.
O mês de conscientização da luta a contra a Aids vem sendo celebrado a cada ano em dezembro. Sua ideia é aumentar a conscientização sobre HIV/AIDS e ao mesmo tempo lembrar aqueles que nos deixaram. É também o momento de comemorar as conquistas já alcançadas, como o aumento do acesso aos serviços de tratamento e prevenção.
Mais do que tudo, este mês, também conhecido como “Dezembro Vermelho”, é importante porque lembra aos públicos e governos da sua presença: ainda há uma grande necessidade de arrecadar dinheiro, aumentar a conscientização, combater o preconceito e melhorar a educação sobre o assunto. No momento, estima-se que 36,7 milhões de pessoas vivam com o vírus. Historicamente, mais de 35 milhões de pessoas morreram de HIV e AIDS, tornando-se uma das pandemias mais destrutivas.
Discriminação de gênero e minorias sexuais aumenta o número de infecções
A situação vulnerável das minorias sexuais e de gênero, em relação à discriminação que enfrentam, aumenta a probabilidade de infecção pelo HIV. Mundialmente, os grupos mais vulneráveis ao HIV e AIDS são homens e homens gays que fazem sexo com homens (HSH) – a terminologia técnica utilizada para homens que mantém relações sexuais com outros homens, mas não se identificam como gays ou bissexuais como, por exemplo, os acompanhantes masculinos. Nos EUA, por exemplo, os homens gays e bissexuais representam cerca de 2% da população, mas carregam 55% das infecções. Isso significa que 1 em cada 6 homens gays e bissexuais serão diagnosticados com HIV durante sua vida. Para homens latinos e negros que fazem sexo com homens, as taxas são ainda maiores: 1 em 4 e 1 em 2, respectivamente.
Há muitas razões pelas quais os homens que fazem sexo com homens estão em situação de maior vulnerabilidade em relação ao HIV. O fato de o HIV ser mais facilmente transmitido através do sexo anal desprotegido do que através do sexo vaginal desprotegido é apenas um desses fatores. Além disso, os HSH são frequentemente estigmatizados, marginalizados ou mesmo criminalizados, razão pela qual muitas vezes relutam em procurar tratamento. A falta de formação adequada de profissionais da saúde torna a situação ainda pior. Soma-se a isso a falta de aceitação social e o apoio psicológico inadequado ou inexistente. É por isso que há uma necessidade urgente de priorizar o atendimento aos homens gays e HSH através de serviços e informações sobre o HIV que atendam efetivamente suas necessidades no contexto da saúde pública e dos direitos humanos.
Além disso, pessoas trans também foram duramente atingidas pela epidemia. As análises mostram que as mulheres trans, em certas comunidades, têm 49 vezes mais probabilidade de viver com o HIV do que a população não-trans. Isto se dá em parte porque os papéis de gênero femininos são frequentemente associados ao abuso pelo parceiro. Devido ao estigma, as mulheres transgênero são altamente vulneráveis a agressões sexuais e estupro punitivo. Homens trans também estão em uma posição vulnerável. Na África, por exemplo, o estupro “corretivo” transfóbico é uma questão séria de direitos humanos. As pessoas trans também enfrentam barreiras no acesso aos serviços de saúde, muitas vezes porque suas necessidades de saúde são específicas.
Os programas de saúde e direitos sexuais e reprodutivos geralmente não atendem às necessidades das pessoas trans. No Brasil, elas estão sob uma forte tensão. O país é o campeão mundial em crimes de violência e ódio dirigidos à população trans. A expectativa média de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos, sendo que a média do país é de 75 anos.
As tendências globais também podem ser vistas no Brasil: a epidemia de HIV é altamente concentrada em populações-chave. Os homens são particularmente afetados: homens têm mais 2 vezes mais probabilidade de estarem infectados com o HIV do que mulheres. Em 2017, 33 mil homens foram infectados com o HIV, em comparação com 15 mil mulheres. Especialmente vulneráveis são os homens jovens gays e que fazem sexo com homens. Na década passada, novas infecções quase triplicaram entre pessoas de 15 a 19 anos e mais do que dobraram entre pessoas de 20 a 24 anos. Os homens são particularmente afetados: homens têm mais 2 vezes mais probabilidade de estarem infectados com o HIV do que mulheres. Em 2017, 33 mil homens foram infectados com o HIV, em comparação com 15 mil mulheres. Especialmente vulneráveis são os homens jovens gays e que fazem sexo com homens. Na década passada, novas infecções quase triplicaram entre pessoas de 15 a 19 anos e mais do que dobraram entre pessoas de 20 a 24 anos.
Políticas conservadoras colocam em risco a história de sucesso do HIV
A política brasileira de direitos humanos tem sido bem-sucedida no ataque à epidemia do HIV. O Programa Brasileiro de AIDS e seu sucesso são reconhecidos mundialmente, devido à abordagem integrada de prevenção, respeito aos direitos humanos e acesso universal gratuito aos antirretrovirais de última geração. No entanto, o estigma e a discriminação ainda agem como grandes barreiras à prevenção do HIV. As pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneras, travestis e intersexo (LGBTI+) são particularmente propensas a experimentar estigma, discriminação e até mesmo violência – o que pode tornar-se um obstáculo para o acesso a serviços de prevenção, tratamento e acompanhamento.
Isso torna-se especialmente verdadeiro no contexto atual de visões políticas cada vez mais conservadoras. É preocupante a emergente evidência de que a vontade política de lidar com a epidemia do HIV está encontrando forte oposição do movimento evangélico socialmente conservador. O movimento e outras forças socialmente conservadoras têm sido eficazes no bloqueio de agendas progressistas. Uma dessas iniciativas foi uma legislação que visava penalizar a discriminação anti-LGBTI+ e os crimes de ódio. O recém-eleito presidente Jair Bolsonaro também é conhecido por seus comentários contra as minorias sexuais e de gênero.
Antes do surgimento da política conservadora, as campanhas de HIV eram especificamente dirigidas às populações-chave. Por exemplo, as campanhas estavam abordando diretamente homens gays e HSHs. Agora a linguagem da campanha é mais geral e vaga. Quando as populações-chave não são abordadas o crescimento excessivo de infecções por HIV em certas populações pode ser visto claramente. A política conservadora também levou a uma grave insuficiência em educação sexual. Existem informações sobre HIV e AIDS, mas sem a devida educação sexual, as pessoas não sabem como buscar e acessar as informações.
As políticas conservadoras podem, a longo prazo, colocar em risco as políticas e o trabalho realizado em torno do HIV no Brasil. Com uma crescente censura, é cada vez mais difícil falar sobre sexualidade e AIDS para os jovens. Caso esse movimento em direção à política regressiva continue, a luta contra o HIV no Brasil pode até mesmo ser revertida.
O Brasil pode muito bem ser vítima de seu próprio sucesso, pois agora há uma nova geração que não experimentou o auge da epidemia do HIV. É claro que um ambiente com um nível decrescente de discussão aberta sobre sexualidade e AIDS é fatal para a nova geração, e já pode ser visto nas estatísticas de infecção pelo HIV.
A importância do diálogo entre governo e sociedade civil
A testagem de HIV entre as populações-chave continua baixo. Por exemplo, apenas 19% dos homens que fazem sexo com homens relataram fazer o teste de HIV nos últimos 12 meses e, portanto, conhecem sua sorologia. O que impede as pessoas dos principais grupos populacionais de testar é, de fato, a falta de conhecimento. Além disso, o medo do tratamento discriminatório dos profissionais de saúde e o medo generalizado de discriminação social são as principais barreiras.
A sociedade civil tem desempenhado um papel importante na resposta ao HIV, e aqui o movimento LGBTI+ tem sido um ator proeminente. De fato, os atores da sociedade civil são frequentemente citados como um dos principais impulsionadores do sucesso de políticas públicas. O diálogo entre sociedade civil e governo continua forte em algumas arenas. Em 2015, o Ministério da Saúde do Brasil desenvolveu uma estratégia chamada Viva Melhor Sabendo para aumentar a testagem de HIV entre populações-chave. Em parceria com organizações não-governamentais, pessoas de populações-chave são treinadas para administrar testes rápidos de HIV por fluído oral. Descobriu-se que essa abordagem aumenta o diagnóstico precoce do HIV entre as populações-chave, em parte porque as pessoas são capazes de evitar serviços tradicionais de saúde, onde poderia haver tratamento discriminatório.
Em Curitiba o Grupo Dignidade, o IBDSEX e o CEPAC estão realizando um projeto de testagem de HIV, onde equipes de rua fazem os testes por fluído oral nas praças centrais da cidade. Além disso, o teste também pode ser feito no escritório do Grupo Dignidade, um ambiente seguro e com maior privacidade. Ao todo, cerca de 250 testes são feitos a cada mês. Um projeto similar foi realizado três vezes anteriormente, e o atual está em andamento desde setembro e continuará até o próximo verão.
Outra forma importante de prevenção do HIV é a distribuição gratuita de preservativos e lubrificantes pelo Grupo Dignidade. Há um forte aspecto educativo tanto no teste de HIV quanto na distribuição de preservativos e lubrificantes: acima de tudo, as ONGs visam aumentar a conscientização sobre o assunto e desmantelar preconceitos.
O futuro do HIV e da AIDS no Brasil
O surgimento de uma nova geração, que não vivenciou o auge da epidemia de HIV, e de políticas conservadoras que objetivam sistematicamente silenciar discussões sobre questões de gênero e sexualidade são uma combinação fatal. Esse problema já pode ser visto nas estatísticas brasileiras de HIV. Infelizmente, os mais vulneráveis a esse cenário são as minorias que já vivem sob constante estigma, discriminação e medo da violência: minorias sexuais e de gênero.
O surgimento de uma nova geração, que não vivenciou o auge da epidemia de HIV, e de políticas conservadoras que objetivam sistematicamente silenciar discussões sobre questões de gênero e sexualidade são uma combinação fatal.
Mesmo quando os resultados ao teste de HIV dão positivo, alguns indivíduos não iniciam o tratamento com receio de discriminação. É trágico que em Curitiba, que é considerada uma pioneira da saúde brasileira, ainda haja pessoas morrendo de AIDS.
O diálogo entre a sociedade civil e governo foi bem-sucedido no passado e deve manter este forte papel. Em vez do silêncio, o que é necessário é aumentar a conscientização, combater o preconceito e melhorar a educação. O Mês da Conscientização sobre a AIDS, então, continua muito necessário.
Heidi Nummi é estudante de mestrado em Política Mundial, jornalista freelancer e ativista LGBTI+ da Finlândia, que está fazendo um estágio de 3 meses no Grupo Dignidade.
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Tradução: Anderson Costa