O Grupo Dignidade atua como amicus curiae nas duas ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) pela criminalização da LGBTIfobia, as ações ADO 26 e MI 4733. Estas ações sustentam pela omissão do Congresso Nacional em editar uma lei que efetive a criminalização da LGBTIfobia no Brasil.

No último dia 13 (quarta-feira) o STF iniciou o julgamento conjunto destas ações e o Grupo Dignidade, por meio de sua advogada, Ananda Puchta, sustentou da tribuna a necessidade do enquadramento da LGBTIfobia no conceito de racismo, para viabilizar o devido amparo aos casos de violência deste tipo pela Lei nº 7.716/1989 (Lei de Racismo).

Veja a sustentação oral na íntegra e, abaixo, leia a transcrição:


Excelentíssimo Presidente, Ministro Celso de Mello, Excelentíssimas Ministras, Excelentíssimos Ministros, boa tarde.

Subo à essa tribuna, não com a alegria de pela primeira vez ocupá-la, mas com o pesar de ter que lembrá-los que estamos morrendo. Subo à tribuna acompanhada de Marielle, Matheuza, Plínio, e de tantos outros que se foram em 2018. 420 mortes. Tenho a certeza de que a minha função e a de meus colegas aqui hoje não é a de apenas discutir as razões constitucionais que levam à omissão do Estado Brasileiro em devidamente proteger a nossa comunidade, mas a de trazer vez e voz àqueles que clamam por uma vida sem violência.

Os casos decorrentes de LGBTIfobia são subnotificados. Não somente porque não há tipificação penal que possibilite esse levantamento, mas também porque o Estado Brasileiro não demonstrou interesse, até o momento, em deixar de ser o país que mais mata LGBTIs no mundo. Temos, enquanto sociedade civil, que nos desdobrar para poder contabilizar cada vida que se vai. Aí está o trabalho do GGB, da ANTRA, da REDETRANS, do Dossiê do Lesbocídio e de tantos outros que fazem esse trabalho arduamente.

Vale lembrar que o estupro corretivo, crime sofrido recorrentemente por mulheres lésbicas e bissexuais, e muitas vezes por homens trans, só passou a figurar no Código Penal Brasileiro a partir de 24 de setembro de 2018, pela Lei nº 13.718. Legislação essa, sancionada pelo Ministro Dias Toffoli, quando exercia a função de Presidente da República. Não é à toa que estamos aqui, clamando mais uma vez ao STF, por igualdade de direitos.

Nós LGBTIs sempre fomos tratados pelo Congresso Nacional como cidadãs e cidadãos de segunda categoria. As iniciativas legislativas propostas para nos garantir cidadania ou são enterradas em gavetas ou são perseguidas, comissão a comissão, para que não sejam aprovadas. Os Parlamentares que abertamente nos representam, são ameaçados de morte até serem obrigados a deixar o mandato e sair do país. Por isso, a presença de cada um de nós aqui, nesse Tribunal, representa a resistência.

Não bastasse isso, é preciso salientar a complexa interseccionalidade que perpassa a nossa comunidade. A violência que sofre uma lésbica branca, de classe média, é completamente diferente daquela sofrida pela travesti preta e pobre. A população de travestis e transexuais está na linha de frente das mortes diárias decorrentes de LGBTIfobia.

Nossa pluralidade e diversidade agrega valor e criatividade, também, no setor privado, que reconhece a potencialidade da comunidade LGBTI. No ano de 2018, o Grupo Dignidade e a Aliança Nacional LGBTI, em parceria com a ONG estadunidense Out & Equal, trabalharam para que 35 empresas e organizações da sociedade civil assinassem a “Carta de Apoio à Diversidade, ao Respeito e à Inclusão de Pessoas LGBTI+ nos Locais de Trabalho no Brasil”. Pela primeira vez na história, empresas se engajaram em uma iniciativa de defesa de direitos, endereçada aos Presidenciáveis, para que esses reconhecessem importância da diversidade e inclusão no local de trabalho, porque é a coisa certa a se fazer, porque é bom para os negócios e porque é bom para o Brasil.

Nós perpassamos todas as classes sociais. Nossa diversidade e pluralidade permeiam diferentes religiões e ideologias. Vale lembrar que 29% da população LGBTI do Brasil votou no atual Presidente, segundo o Datafolha.

Diferentemente do que alguns tentam veicular, a criminalização da LGBTIfobia não cerceia liberdade religiosa. Queremos apenas parar de estampar folhas de jornal sujas de sangue, como o caso recente da travesti morta em Campinas. Seu algoz confessou o crime e contou como retirou o coração da vítima e em seu lugar colocou o que? A imagem de uma Santa. São esses requintes de crueldade que combatemos e que configuram a LGBTIfobia.

Não queremos impedir liberdade de culto ou crença, pois ocupamos, também, os bancos das Igrejas. Muitos de nós são cristãos. Cristãos que pulverizam amor por onde passam e não o ódio. Não há porque temer a criação de uma legislação que pune crimes decorrente de ódio e preconceito, se se diz pregar amor, tolerância e compaixão.

Como disse nosso colega da ANAJURE, evangélicos sofrem preconceito sim, mas não morrem por professarem sua fé. Nós morremos! E não temos nenhuma legislação para nos proteger.

O presente Mandado de Injunção visa, somente, que o Estado Brasileiro se comprometa a punir àqueles que violam nosso direito mais valioso, o direito à vida. Procura-se obter a visada criminalização com base na parte final do artigo 5º, inc. 71, da CF/88, por ser medida necessária na garantia fática do exercício da cidadania da população LGBTI brasileira, bem como de seu fundamental direito à segurança.

A ADO 26 segue em perspectiva muito semelhante, tendo como objeto a inércia legislativa do Congresso Nacional em editar lei para criminalizar todas as formas de LGBTIfobia. Quanto à mora legislativa, fundamenta-se na vedação da proteção deficiente e ao direito fundamental à segurança da população LGBTI.

Não se pode deixar de considerar a clara inconvencionalidade nessa omissão legislativa, já que o Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual traz em seu artigo 1.1. a obrigação de se respeitar direitos, e em seu artigo 2.1 o dever de se adotar disposições de direito interno. Essa Corte, recentemente, realizou controle de convencionalidade na ADI 4275, em que o Excelentíssimo Ministro Fachin fora relator, quando adequou a normativa brasileira à Opinião Consultiva nº 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Que o faça novamente, para adequar, novamente, a nossa legislação à convenção americana.

Não bastasse isso, essa Corte já considerou, quando do julgamento do Caso Ellwanger, que racismo configura toda ideologia que pregue a superioridade e/ou inferioridade de um grupo relativo a outro. Cumpre salientar, como bem falado pelo meu colega representante do GGB, que… nós precisamos lembrar que assim como a comunidade judaica, gays e lésbicas também foram encaminhados aos campos de concentração nazistas, portando um triângulo rosa e preto, os quais marcavam o pertencimento à uma dita “raça inferior” de orientação sexual diversa à heterossexual.

Caso não se aceite seu enquadramento no conceito de racismo acima disposto, a LGBTIfobia se insere no conceito de discriminações atentatórias à direitos e liberdades fundamentais, o que também impõe a elaboração de lei criminal que as puna com efetividade. Ainda, tendo em vista o direito de isonomia e, portanto, o direito à igual proteção penal, a LGBTIfobia deve ser punida com o mesmo rigor aplicado na Lei de Racismo.

Ao ficar inerte, portanto, o Estado Brasileiro se torna também algoz de suas cidadãs e cidadãos mortos todos os dias em decorrência do preconceito e da LGBTIfobia.

Nesse sentido, requer-se a procedência de ambas as demandas, para que essa Corte Constitucional, em seu caráter contra majoritário, estipule prazo para criação de uma legislação que proteja a vida, a liberdade e a integridade pessoal da população LGBTI. E ainda, que interprete a Lei nº 7.716/1989, a Lei de Racismo, de forma a abranger atos discriminatórios motivados por orientação sexual e identidade de gênero, ou seja, contra a comunidade LGBTI. São os argumentos que trago e agradeço aos meus pares por me possibilitarem esta sustentação.

Muito obrigada.